Escravidão à Vista : O Retorno do Vazio Protecionista

Por Tiago Muniz Cavalcanti*

O dia 13 de maio de 1888 não representou o triunfo da compaixão e da misericórdia. Foram fatores de cunho predominantemente econômico que guiaram a sociedade brasileira do século XIX e motivaram a abolição oficial da escravidão. As razões de ordem humanitária estavam em segundo plano e assim permaneceram.

A proclamação da Lei Áurea atendeu a exigências externas. Além do interesse britânico no sentido de elevar o custo da produção local e, com isso, proporcionar uma maior competitividade às suas colônias que já produziam com mão de obra assalariada, o sistema capitalista recém-industrializado reclamava o surgimento de um mercado consumidor para seus produtos, algo incompatível com o escravismo.

Internamente, interesses da classe senhorial também encorajaram o Império. Era preciso estancar a convulsão que tomava conta do País: fugas, levantes, incêndios e sabotagens representavam a luta dos escravos pela sua liberdade. Mais importante: fazia-se premente deter a propagação de um movimento abolicionista verdadeiramente emancipatório, que pregava uma alforria genuína por meio da implementação de reformas sociais, da democratização fundiária e da profunda reconstrução do País. 

Foi assim que deputados e senadores – oriundos da classe dominante – votaram a Lei º 3.353 de 13 de maio de 1888 declarando extinta a escravidão. Mas as mãos que assinaram a Lei Áurea não assinaram a carteira de trabalho: mantiveram o vazio protecionista que caracterizava a escravidão. E isso, aliado à perpetuação do cenário social marcado pelo latifúndio e pelo coronelismo, foi a semente para a escravidão contemporânea que perdura até os dias atuais.
De lá para cá, o País evoluiu, é inegável. Apesar de preservarmos uma estrutura fundiária que facilita a exclusão e a opressão, a debilidade protecionista foi substituída por um arcabouço jurídico-normativo trabalhista que, longe da excelência, foi capaz de atenuar a situação de absoluto desamparo dos trabalhadores. E, com isso, municiou os órgãos de fiscalização estatais no sentido de fazer cumprir o comando legal assecuratório de um patamar mínimo de dignidade à classe que vive do trabalho.

No entanto, hoje – cento e vinte e nove anos depois – a sociedade assiste atônita ao resgate da desregulamentação e da desproteção. Definitivamente, o humanismo e o altruísmo ainda passam longe das decisões tomadas pelos detentores do poder político, legítimos representantes da classe senhorial atual.

Não bastasse a violenta limitação de gastos públicos e o atroz encolhimento do Estado social, o governo federal vem encampando “reformas” que pretendem esvaziar a teia protecionista que garante liberdade e dignidade aos que vendem sua força de trabalho. A reforma trabalhista, já aprovada na Câmara dos Deputados, e o projeto que pretende (des)regulamentar o trabalho no campo (PL 6442/2016) objetivam flexibilizar as relações de trabalho, pautando-as sob a fantasiosa égide da “livre” negociação. Não há dúvidas do que isso acarretará: o conteúdo do contrato permanecerá incólume ao alvitre do empregador, não haverá espaço para tratativas ou negociações; ao trabalhador, restará a conformação com as condições impostas, pois o desemprego, o desamparo e a pobreza não lhe permitem qualquer resistência.

A perversidade das medidas chega ao extremo. Além de arruinar direitos, o PL 6442/16 afasta a aplicabilidade das normas de saúde e segurança no trabalho na agricultura, pecuária, silvicultura, exploração florestal e aquicultura, deixando desprotegida a vida e a integridade física do trabalhador rural; cria embaraços à inspeção do trabalho; permite o fracionamento e até mesmo a suspensão de intervalos legais; autoriza o trabalho em domingos e feriados incondicionalmente; aprova a prorrogação da jornada por até quatro horas diárias; altera as regras do horário noturno, da concessão de férias e do contrato de safra; e, não menos grave, permite o pagamento salarial em remuneração de “qualquer espécie”, tornando legítima, por exemplo, a contraprestação em pedaços de terra. Em poucas palavras, legaliza-se o feudalismo em pleno século XXI.

Não há dúvidas de que tudo isso provocará um aumento significativo das condições degradantes de trabalho. Não por acaso, o governo planeja alterar o conceito de trabalho análogo ao de escravo para retirar as expressões “condições degradantes” e “jornadas exaustivas” da definição legal, condicionando sua ocorrência unicamente à restrição da liberdade de locomoção. A intenção é muito clara: legitimar a exploração em condições subumanas.

Se, assim como outrora, o poder econômico continua dando as cartas no Congresso Nacional, outra alternativa não resta à classe trabalhadora senão resgatar a rebeldia dos escravos pré-republicanos e promover uma luta por mais dignidade.

Tiago Muniz Cavalcanti é procurador do Trabalho, coordenador nacional de erradicação do trabalho escravo do Ministério Público do Trabalho.

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