Projeto sobre terceirização afronta Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência
Por Lisyane Motta*
A terceirização proposta no PL 4330/2004, que passou pela Câmara Federal e está em apreciação no Senado, além de afrontar a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, adotada pelo Brasil, é inconstitucional.
De acordo com o ordenamento jurídico trabalhista brasileiro, o gozo e o exercício de direitos pelos trabalhadores e o cumprimento de inúmeros deveres da empresa são condicionados ao cálculo do número de empregados que ela possui. Dependem, por exemplo, do número de trabalhadores: a constituição das Comissões Internas de Prevenção de Acidentes de Trabalho (CIPAS), o Serviço Especializado em Segurança e Medicina do Trabalho (SESMTS), a obrigatoriedade da exibição do controle de frequência à fiscalização, a aprendizagem profissional e até mesmo a chamada Lei de Cotas (Lei 8.213/1991), para a inclusão das pessoas com deficiência e reabilitados no mercado de trabalho.
A aprovação da terceirização importará no esfacelamento do número de empregados das empresas, ocasionando a perda de unidade do poder de barganha e da força dos trabalhadores. A fragmentação de categorias de trabalhadores e de sua representação sindical trará evidentes prejuízos aos resultados das negociações coletivas, com a consequente perda do poder aquisitivo dos salários, imposição de jornadas mais longas, maiores riscos de acidentes, menor responsabilização das empresas, menos fiscalização, maior lesão ao meio ambiente, além do aumento das inúmeras espécies de discriminação, assédio moral, revistas vexatórias e toda a sorte de mazelas, das quais os trabalhadores terceirizados são as maiores vítimas. Dentro da “caixa de maldades” trazida ao mundo do trabalho pelo PL da terceirização, uma das mais perversas será a alteração da base de cálculo do número real de trabalhadores da empresa na eficácia e cumprimento da Lei de Cotas.
A Lei 8.213/1991 - política afirmativa para a inclusão das pessoas com deficiência e reabilitados - se baseia no cálculo do número total de empregados para a incidência de percentuais que variam de 2% a 5% sobre esse total, destinados a pessoas com deficiência.
Com a liberação da ampla terceirização, é possível prever como as empresas poderão facilmente fraudar as cotas legais e trazer um retrocesso incalculável para as ações de inclusão de pessoas com deficiência e reabilitados no mercado de trabalho.
O PL 4330 é tão nefasto que, além de atingir a formação profissional dos jovens brasileiros - em se tratando da aprendizagem profissional de pessoas com deficiência - atingirá todos os trabalhadores com deficiência, tanto jovens quanto adultos, pois não existe para esses trabalhadores a limitação de idade para a aprendizagem.
A norma que regulamenta a aprendizagem impõe que as empresas propiciem aprendizagem profissional (5% a 15%) sobre os trabalhadores cujas profissões exigem formação prévia. Com a terceirização, a alteração da base de cálculo implicará no desaparecimento ou diminuição de sua incidência e esvaziará as escolas do chamado Sistema “S” (SENAI, SENAC, SENAR, SENAT, SESCOOP). Finalmente, é preciso salientar que a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU foi firmada no Brasil com o quórum previsto na Emenda Constitucional 45 que lhe conferiu o status de norma constitucional.
A Convenção prevê ações afirmativas para a inclusão de pessoas com deficiência no trabalho. Conforme prevê o artigo 27, “os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência ao trabalho, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas”. De acordo com o texto, isso abrange o direito à oportunidade de se manter com um trabalho de sua livre escolha ou aceitação no mercado laboral, adotando medidas apropriadas, incluídas na legislação. Com isso, a norma internacional busca, entre outras coisas, “promover o emprego de pessoas com deficiência no setor privado, mediante políticas e medidas apropriadas, que poderão incluir programas de ação afirmativa, incentivos e outras medidas”. Uma norma infraconstitucional que contrarie a Convenção da ONU, como ocorre com a terceirização trazida pelo PL 4330/2004, padece de vício de inconstitucionalidade e, como tal, merecerá ser tratada.
*Lisyane Motta é procuradora do trabalho no Rio de Janeiro e coordenadora nacional de Promoção de Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho do Ministério Público do Trabalho (Coordigualdade).